
Autor de um livro lançado a 8 de maio sobre leis e violência doméstica, o Procurador da República jubilado considera que Portugal evoluiu mais na legislação de que na capacidade de a aplicar.
Temos legislação suficientemente avançada neste domínio, embora existam medidas importantes anunciadas que não são implementadas e melhorias que tardam em ser consideradas.
Por exemplo?
Uma medida não implementada, mas anunciada em 2019 como ação prioritária, é a criação de uma rede de intervenção disponível para atuação urgente durante 24h, que envolva as entidades judiciárias, policiais e da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica e dos Gabinetes de Apoio à Vítima. Um exemplo de melhoria que tarda em ser considerada, embora o seu estudo esteja decidido também desde 2019, é o desenvolvimento de um modelo de intervenção judiciária que integre num só procedimento as vertentes criminal, de proteção e promoção dos direitos das crianças, que têm vindo a ser fortemente afetadas, e de resolução dos conflitos familiares que esta realidade desencadeia; projeto que deverá ser desenvolvido a par da também reiteradamente anunciada implementação do modelo da Casa da Criança, de inspiração islandesa. Temos, contudo, evoluído mais na construção do edifício legislativo do que na capacidade de o aplicar. E a sua efetiva implementação é um problema de organização, de meios, de formação dos recursos humanos.
Se tivesse de destacar um artigo da legislação em vigor, pela importância que encerra, qual seria e porquê?
No que respeita ao procedimento criminal, destaco as normas que determinam a realização de uma avaliação do risco de revitimização, em regra desenvolvida pelos órgãos de polícia criminal, que se inicia logo quando da notícia dos factos que podem constituir crime mas tem continuidade durante as fases de investigação e julgamento, e que se reveste de grande importância para a adoção de medidas eficazes de proteção da vítima e também para uma melhor adequação das medidas de contenção do agressor.
“Uma medida não implementada, mas anunciada em 2019 como ação prioritária, é a criação de uma rede de intervenção disponível para atuação urgente durante 24h, que envolva as entidades judiciárias, policiais e da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica e dos Gabinetes de Apoio à Vítima”
As Fichas de Avaliação de Risco em Violência Doméstica (RVD) foram recentemente reformuladas. O que se espera daí?
Aguarda-se a sua efetiva implementação, na esperança de que se possam ultrapassar as insuficiências e dificuldades que já haviam sido detetadas na implementação do modelo aplicado desde a aprovação da Lei da Violência Doméstica, em 2009, que se encontram documentadas em alguns dos relatórios da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD). Insuficiências decorrentes da necessidade de as melhorar e atualizar, à luz da experiência e do avanço do conhecimento. Dificuldades resultantes, em boa parte, da insuficiente preparação de muitos dos que as aplicam.
O número de mulheres assassinadas anualmente às mãos de companheiros teima em não baixar. A prevenção está a falhar. Porquê?
O investimento na prevenção, nas suas diversas dimensões, a promoção da acessibilidade das vítimas às estruturas de apoio, a sua proteção no decurso dos procedimentos, o desenvolvimento destes num prazo razoável e a aplicação esclarecida da lei que já temos são elementos que concorrerão seguramente para diminuir o número de homicídios neste contexto. Fui coordenador da EARHVD durante 6 anos e um dos objetivos do trabalho desta equipa é precisamente contribuir para a prevenção do homicídio no contexto da violência doméstica. Nas análises retrospetivas que realizamos, cujos relatórios demos a conhecer às entidades com responsabilidades neste tema e publicamos para conhecimento geral, foram detetados diversas insuficiências e efetuadas recomendações que visavam a sua superação. Mas, foi um trabalho muito pouco apoiado pelas entidades que o deveriam suportar, com escassíssimos recursos, em que o silêncio foi a principal resposta dos destinatários das recomendações, mesmo quando vieram a ocorrer alterações provocadas por estas. A cultura de avaliação ainda encontra muitas dificuldades em ser levada a sério.
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