Ticker

6/recent/ticker-posts

“Os americanos e os europeus foram extraordinariamente hipócritas com a Ucrânia”

O académico francês Nicolas Tenzer esteve num seminário da Universidade Católica, em Lisboa.

Em Lisboa para um seminário na Católica, o académico francês Nicolas Tenzer falou ao DN sobre uma saída dos EUA das negociações entre Rússia e Ucrânia, o papel da Europa e como Putin manipula todos.

Veio a Lisboa dar uma aula aberta sobre a guerra na Ucrânia e a forma como nos fez repensar os principais conceitos das relações internacionais. É justo dizer que o regresso de Donald Trump ao poder marca o fim da ordem mundial que conhecemos desde o final da Segunda Guerra?

De facto, não sei quando acabou essa ordem. Se tivesse mesmo de a datar, diria que foi em 2013 - foi o momento em que Barack Obama se recusou a aplicar na Síria as linhas vermelhas que ele próprio tinha definido. Foi um pouco como um símbolo. Tivemos crimes maciços contra a humanidade e, no final, passaram completamente despercebidos, sem intervenção. Talvez pudéssemos recuar um pouco mais do que isso. A total falta de reação do Ocidente - apesar de ter havido o início de uma reação mas que foi completamente apagada pelo 11 de setembro, na altura dos crimes maciços de Putin na Segunda Guerra da Chechénia, que não podemos esquecer. E temos de recordar os livros de Anna Politkovskaya, que foi assassinada. Boris Nemtsov, que também falou sobre o assunto, foi igualmente assassinado. Tudo isso, de facto, tornou-se insignificante na mente dos líderes. Mas poderíamos falar de 2008, da ausência de intervenção de George W. Bush na Geórgia, quando Putin se apoderou de 20% do território georgiano. Ou de Obama, em 2014, com a anexação da Crimeia. 2015, na Síria, durante o cerco e a queda de Alepo fomos vários, incluindo amigos generais americanos, que queriam impor uma zona de exclusão aérea na Síria. Nada foi feito. E depois de 2022-2025, um despertar mas uma intervenção pouco convicta, agora de Biden. O suficiente para a Ucrânia não perder, mas nunca o suficiente para a Ucrânia ganhar. Uma total falta de estratégia a médio prazo relativamente à Rússia. Uma indiferença pelo crime, porque os americanos poderiam ter salvo dezenas de milhares de civis. Mas recusaram-se a salvar os civis. Não queriam salvá-los. Não foi só “Somos impotentes”, não. E os europeus também. Não vou dizer que foram apenas os americanos. Por isso, para mim, é muito difícil dizer exatamente quando começou a nova ordem mundial. Mas é um longo caminho. E Trump é apenas a continuação. Com uma grande diferença, que é o facto de Trump ter passado para o lado negro da força, por assim dizer. Com Trump há uma forma de conluio ideológico com Putin. Mas, de certa forma, e o que vou dizer pode chocar alguns, mas os americanos e os europeus foram extraordinariamente hipócritas antes. Falaram nos direitos humanos, Biden falou na Aliança para a Democracia, todas essas coisas, “estamos a ajudar a melhorar o terrível sofrimento do povo ucraniano”, etc… E o que é que fizeram? Agora Trump passou completamente para o lado do inimigo. Por outras palavras, há um conluio ideológico entre Trump e Putin. Que não havia com George W. Bush, Obama ou Biden. Portanto, houve uma mudança significativa. E a verdadeira questão, como é óbvio, é o que os europeus vão fazer.

Antes de irmos aos europeus, acha que se Biden tivesse tido uma atitude menos “hipócrita”, como lhe chamou, a guerra já teria terminado?

Sim. No primeiro aniversário da guerra, a 24 de fevereiro de 2023, escrevi um artigo sobre “a guerra que nunca deveria ter acontecido”. Em 2024, no segundo aniversário, escrevi outro artigo também sobre esse tema. E agora, em 2025, voltei a escrever. Mas dezenas de milhares, senão centenas de milhares de pessoas morreram entretanto. Pessoas que poderíamos ter salvo… E isso assombra-me, a sério. Nos meus artigos, como no livro Notre Guerre, uso o termo “culpa”. Voltei muitas vezes a esta noção de culpa. Putin e os russos são legalmente culpados pelos assassínios, claro... Centenas de milhares de russos são legalmente culpados. Por vezes, falo com os meus amigos dissidentes que me dizem "Ah, sim, mas não são os russos, é Putin". Não, é Putin primeiro. É como os alemães com os nazis. Há muitos livros sobre alemães comuns. E agora há muitas discussões sobre os famosos "russos comuns". Estamos a ter o mesmo tipo de debate. Mas nós podíamos ter salvo o dia e por isso digo que há uma forma de culpa, para além da culpa legal ou judicial, mesmo dos russos, há outra culpa. Havia um conceito que desapareceu um pouco dos comentários e que era "a responsabilidade de proteger". E nós tínhamos essa responsabilidade.

E a Europa? Os europeus poderiam ter feito melhor do que fizeram?

Os europeus andaram sempre a reboque dos Estados Unidos. Mesmo se alguns tomaram posições mais fortes. Por exemplo, houve um debate no final dos anos Biden sobre a autorização de armas americanas para atacar em profundidade em território russo, porque isso era essencial para interromper a logística e os locais a partir dos quais os ataques russos contra civis e o exército ucraniano estavam a ser lançados. No final, muitos europeus, incluindo os franceses, os britânicos e, claro, os Estados Bálticos, os polacos, os países nórdicos e os checos, disseram que não podia continuar assim. Portanto, os europeus quiseram fazer um pouco mais. Mas, ao mesmo tempo, quando olhamos para o fornecimento de armas, em particular por parte dos grandes países europeus, penso, por exemplo, que o meu país, a França, deveria ter mudado para uma economia de guerra. Lembro-me de Emmanuel Macron, em junho de 2022, dizer que as economias europeias deveriam tornar-se economias de guerra. E acho que ele tinha toda a razão. Mas não o fizemos em França. Portanto, é muito fácil dizer isso. E ele tinha razão em mencioná-lo. A economia de guerra significa - para utilizar uma expressão russa - que a guerra tem de entrar na cozinha de todos os europeus. Ou seja, cada europeu tem de tomar consciência de que a ameaça russa não é uma ameaça abstrata. Antes de mais, há a guerra de extermínio. Penso que é muito importante dizer isto. Porque, para mim, há uma extensão da História. A minha família viveu a Shoah muito diretamente, essa é outra história. Mas, para mim, existe uma relação muito direta entre a guerra de extermínio de Hitler contra os judeus, e contra alguns europeus de Leste, e o que Putin está a fazer. Se Putin pudesse ter exterminado toda a população ucraniana, tê-lo-ia feito.

Acha que era esse o objetivo? Porque muitos analistas disseram que a Rússia não parecia estar a usar todo o seu poderio contra a Ucrânia…

Não é verdade.  Para além dos ataques na parte livre da Ucrânia, quando olhamos para o que está a acontecer nos territórios ocupados, vemos a deportação de crianças e um processo de russificação, que é um crime de genocídio ao abrigo da Convenção de 9 de dezembro de 1948. Vemos também violações coletivas de mulheres. Por vezes, no caso dos prisioneiros de guerra, há também violações de homens. Mas é sobretudo a violação de mulheres nos territórios ocupados. Assim que os russos chegam a um lugar ou o conquistam, criam imediatamente câmaras de tortura. É um símbolo. À vista de todos, à vista de todos. As execuções sumárias foram levadas a cabo para aterrorizar a população. Temos testemunhos de crianças que foram executadas à frente dos pais, sem qualquer motivo, apenas para os aterrorizar. E há as valas comuns que também foram descobertas noutros locais por onde os russos passaram. Mariupol, uma cidade de 400.000 habitantes, sofreu entre 70.000 e 100.000 vítimas. Falamos muito sobre a memória de Srebrenica [na Bósnia, em 1995]. Em Srebrenica foram mortas 8.000 pessoas - o que foi muito. Não podemos entrar em comparações macabras. Foi enorme. Mas agora estamos a falar de números que são, diria eu, incrivelmente mais elevados. E isto foi o que Oleksandra Matviichuk, vencedora do Nobel da Paz ucraniana, disse. Numa entrevista há dias, ela disse que nos territórios ucranianos ocupados há 1,6 milhões de crianças que os russos estão a recrutar para o exército. Não imediatamente, porque alguns são demasiado jovens. Mas já os estão a treinar, em campos militares, nos acampamentos de escuteiros, mesmo aos 6 anos de idade, aprendem o primeiro manuseamento de armas, etc., para que depois possam ser usados como carne para canhão, enviados combater os seus nas profundezas do seu próprio país. 

Nos últimos dias e semanas, ouvimos Trump ameaçar que os EUA podem abandonar os esforços para chegar a um acordo de paz se as duas partes não se entenderem. Por um lado, esta é uma oportunidade para a Europa desempenhar um papel mais importante nestas negociações? Por outro, se os EUA se retirarem, o que é que isso significa em termos da sua ajuda à Ucrânia?

Portanto, a primeira pergunta é: vão-se embora? Bom, se disserem que não podem fazer nada, que é demasiado complicado, que os europeus estão por sua conta, podemos assumir que os EUA vão efetivamente retirar a sua ajuda militar e, em particular, o que seria mais prejudicial no futuro imediato, a partilhar de informações das secretas militares. Ora, há que ter em conta que os europeus já doaram muito mais armas do que os EUA à Ucrânia. E mesmo quando se trata de inteligência militar, haverá uma lacuna imediata, isso é certo, mas os europeus e os outros aliados, os japoneses em particular, podem mais do que compensar a diferença. Portanto, isso é bom. Em segundo lugar, se os americanos saírem, será um alívio. Porque hoje vejo os europeus ainda a tentar persuadir Trump, a encaixarem-se nas suas narrativas, a tentar não o apressar. Por conseguinte, ficam ali num meio termo. E também vejo o próprio presidente Zelensky a ser extremamente cauteloso e por isso nem sempre é muito compreensível o que ele está a fazer. Por isso, penso que a saída dos americanos terá pelo menos uma vantagem, que é a de restabelecer alguma clareza. E também obrigará os europeus a assumirem toda a sua responsabilidade. E acrescentaria ainda um terceiro elemento, que é o facto de que, quando ouço a palavra acordo de paz, negociação, fico muito zangado. Porque, para mim, a ideia de colocar paz e Rússia, negociação e Rússia, na mesma frase é algo que escrevi num artigo em fevereiro de 2016, quando disse que "não se pode negociar com a Rússia de Putin". Por isso, temos de parar de falar assim. Porque, atualmente, sabemos muito bem que a Rússia quer ir até ao fim. E que as chamadas negociações são uma forma de Putin jogar com a nossa estupidez, a nossa falta de inteligência ou de compreensão da realidade deste regime. Reforça também a nossa fraqueza. E, de facto, eu diria que significa perder toda a credibilidade. E, em segundo lugar, se tivermos um acordo de paz com a Rússia, então, em primeiro lugar, isso significaria que a força traz dividendos. Porque Putin ficaria com uma parte da Ucrânia, talvez menos do que queria, mas, mesmo assim, isso significaria que, no final, a força funciona. E o que é que isto significa em termos de ordem internacional? Que sinal estamos a enviar ao Irão, à China e à Coreia do Norte?

À própria Rússia...

E à própria Rússia, antes de mais. Em segundo lugar, nos territórios ocupados, está a acontecer o que descrevi anteriormente. E um acordo de paz significaria dar a Putin o poder de matar. Seria dizer que ele pode fazer o que quiser nos territórios ocupados, que pode assassinar ucranianos. Em segundo lugar, depois de recrutar 1,6 milhões de crianças ucranianas, elas vão virar-se contra o exército. Por isso, a Rússia vai voltar a atacar a Ucrânia. E talvez estes 1,6 milhões de crianças ucranianas usadas como carne para canhão se virem contra outros países europeus. E há um terceiro elemento. Estou a desenvolvê-lo cada vez mais. Se houver algum tipo de acordo de paz que seja uma forma de Putin se fortalecer para atacar novamente a Ucrânia e ir mais longe para atacar a Europa, a opinião pública europeia vai dizer "Mas porquê continuar a ajudar a Ucrânia? Porquê rearmar? Temos um acordo de paz". Por isso, considero que tem um efeito desmobilizador extraordinariamente perigoso.

Se um acordo de paz não é a solução, então como lidar com a Rússia de Putin?

Penso que a única coisa a fazer, e não estou a dizer que é fácil, é derrotá-lo militarmente na Ucrânia. Ninguém disse que tínhamos de ir até Moscovo. Não vamos fazer com Moscovo o que os aliados e os soviéticos fizeram com a Alemanha nazi. Não é esse o objetivo. Ninguém está a sugerir isso. Nem eu. Mas a derrota militar de Putin é algo que podemos conseguir. É algo que já deveríamos ter feito em 2008, ou pelo menos em 2013-2014. Devíamos tê-lo feito em 2022. Penso que fui uma das únicas pessoas em França, ou talvez mesmo na Europa, a dar 11 entrevistas na televisão e na rádio, a 24 de fevereiro de 2022, a dizer que nós, europeus, devíamos intervir. Na altura, não com tropas no terreno, mas com meios militares aéreos, essencialmente para atingir mísseis e tanques russos que tinham penetrado na Ucrânia. Penso que o poderíamos ter feito. Quanto mais tempo passa, maior é o custo e maior é o risco. Mas chega uma altura em que tem de ser feito. E eu meço os riscos, sei que há o risco nuclear.

Ia precisamente colocar essa questão, uma intervenção militar europeia não agravaria esse risco nuclear?

Não estou a dizer que o risco é zero. Não estamos a falar de risco zero. Tudo o que podemos dizer é que se Putin usar armas nucleares, ele morre pessoalmente. Ele não quer saber se a Rússia desaparece. Quando vemos como está a enviar jovens russos para a morte de uma forma monstruosa… Ele está-se nas tintas para as vidas dos ucranianos. Mas está-se nas tintas também para as vidas dos russos, para a sua própria população. Esse é o primeiro fator. O segundo fator, que considero extremamente importante, é a existência de uma cadeia de comando. Não é só Putin. Há o ministro da Defesa, o Estado-Maior das Forças Armadas, as pessoas que vão atuar. Não tenho a certeza de que resulte, porque se trata de uma decisão bastante solene. Mesmo que se trate de pessoas que obedecem cegamente a Putin, não sabemos nada sobre como podem reagir num caso como este. E, em terceiro lugar, se houver algum sinal disso, os serviços secretos americanos são capazes de ver o que se está a passar… A não ser que Trump os destrua completamente, porque está em vias de o fazer.... Mas essa é outra questão. Putin tem jogado com isso. Ele está a jogar desde muito antes da guerra com a Ucrânia, muito antes de 2014. E, de facto, foi isso que nos dissuadiu durante 25 anos. Ele sempre jogou com isso. E considero isso extremamente perigoso. O que é que significa em relação à China? Porque a China está a dizer: "Esperem lá, eu tenho o direito de atacar Taiwan e invadir Taiwan porque sou uma potência nuclear". Putin está a usar esta ferramenta para se dar o poder de restabelecer áreas de influência e o poder de matar. Em termos de relações internacionais, há um certo ponto em que isso se torna completamente inaceitável.

Pode dizer-se que neste momento a longa experiência de Putin, acumulada ao longo dos últimos 25 anos, vale muito mais politicamente do que a arte de negociar do presidente americano?

Putin é totalmente capaz de manipular qualquer pessoa. Ele manipulou os líderes europeus. No passado, manipulou Macron, Merkel e outros com grande sucesso. E, finalmente, penso que Macron compreendeu isso. Embora fosse óbvio, para as pessoas que sabem um pouco sobre a Rússia. Eu há anos que ando a estudar este país. Fui lá não sei quantas vezes antes de 2014, quando ainda podia entrar. Depois de 2014, deixei de ter autorização para entrar. Agora é muito claro que Putin está a manipular Trump. Jogou com todos os aspectos psicológicos, com a vaidade da personagem. Jogou perfeitamente com isso. E está a conseguir tudo o que pode de Trump.

Enviar um comentário

0 Comentários